Eu vi um diabo com a bíblia na mão.

Guilherme Pinheiro
4 min readMay 18, 2022

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o livro de eli — um filme que tem tudo a ver com isso:

É de um conhecido manuscrito antigo a história em que Jesus de Nazaré é tentado pelo Diabo durante sua peregrinação no deserto da Judeia.

Pouco antes de pegar a estrada e sair por aí pregando, ensinando e curando, Jesus passa por um período intenso de preparação. “Tendo jejuado 40 dias, teve fome”, diz o manuscrito.

E é justamente nesse momento de desgaste que o diabo entra em cena pra tentar Jesus, fazendo-o 3 propostas que se acedidas o desvirtuariam de sua missão de ser Cristo para o mundo.

Compartilho isso com você porque foi no momento em que essa história retornou à minha consciência que eu consegui enxergar um caminho se abrindo em meio à crise pela qual eu estava passando.

Uma crise que era como que uma pedra dificultando todas as minhas tentativas de me aproximar das palavras que sempre foram como uma fonte de vida, de cura e de iluminação na minha vida,

uma crise com a biblioteca de manuscritos de onde vieram essa e muitas outras histórias de Jesus.

Uma crise com a minha Bíblia.

Porque nos últimos tempos eu vi a Bíblia debaixo do braço de quem se levantava para propor os maiores absurdos e para legitimar perspectivas inaceitáveis. Leituras fundamentalistas, pedagogicamente infantis e interpretações excludentes que fazem Deus parecer cada vez mais inalcançável e inacessível.

Por mais que muitos da minha geração a desconsiderem cada vez mais, ainda tem muita gente se valendo da autoridade que esse texto é capaz de evocar. E talvez seja justamente por isso que ele é cada vez mais desconsiderado.

Pois é. Nos últimos anos eu me desgastei demais enquanto via surgir uma enorme quantidade de gente endiabrada com a Bíblia na mão. Demônios e diabos com as escrituras debaixo do braço.

Num primeiro momento, a proposta tentadora que esse desgaste suscitou lá no meu inconsciente foi a de me afastar da minha Bíblia, pois se as forças espirituais malignas desse mundo andam citando a Bíblia por aí, longe de mim me parecer com isso!

Mas não me fez bem caminhar assim.

E nem foi assim que Jesus caminhou depois de ver o diabo usando as escrituras para tentá-lo.

Isso mesmo,

O diabo usou a Bíblia para embasar as tentações que colocou diante do Cristo em sua peregrinação no deserto:

“Então o diabo (…) disse: — se você é o Filho de Deus, jogue-se para baixo, porque está escrito: aos seus anjos ele dará ordens a seu respeito. E eles o sustentarão…”

O manuscrito que contém essa história é conhecido como o Evangelho de Mateus, e essa menção que o demônio faz à Escritura se encontra no livro bíblico dos Salmos.

Um diabo com a Bíblia na mão citando a Bíblia para corromper Jesus.

E sabe como Jesus respondeu?

“Também está escrito: não ponha à prova o Senhor, seu Deus.”

Uma citação do livro de Deuteronômio.

‭O filho de Deus citando as escrituras para não cair em tentação.

A mesma biblioteca de manuscritos, acessada e interpretada em direções completamente diferentes.

Não à toa em 1655 o padre Antônio Vieira escreveu que as palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demônio.

Na Bíblia a gente consegue base pra quase tudo que a gente quiser legitimar.

É por isso que a questão não é se nós vamos aprender a citar a Bíblia a cada afirmação que colocarmos no mundo, mas se aprenderemos a ler a nossa Bíblia como o Cristo lia a sua.

E se com isso seremos pessoas que são como fonte de vida, cura e salvação para o mundo: pequenos Cristos na história.

Foi através desse episódio de Jesus que constatei que não faria o menor sentido desconsiderar a Bíblia do meu horizonte de sentido sob a justificativa de que é com ela debaixo do braço que pessoas violentas emitem discursos diabólicos mundo a fora.

Porque se foi citando a Bíblia que o demônio tentou a Jesus no deserto, também foi recorrendo às escrituras que Jesus venceu a tentação do maligno, assim permanecendo em sua vocação de ser Cristo para o mundo.

Que Deus nos livre da tentação de usarmos a Bíblia para legitimar nossos desejos e ambições individuais, e nos ensine a nos aproximarmos das escrituras como pequenos Cristos que, seguindo as palavras de Jesus, trabalham pela restauração de todas as coisas.

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